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terça-feira, 10 de maio de 2011

Por que Cristo morreu?

Antonio José de Pinho


Todos os anos os católicos comemoram a páscoa, a celebração da morte e ressurreição de Jesus. Assistimos a filmes na TV sobre sua vida e encenações de sua paixão nas igrejas, mas me pergunto se realmente entendemos o real e profundo significado das últimas semanas de Jesus na Terra. O que representa sua morte ao homem moderno, tão acostumado como é às facilidades de um mundo inundado pela crescente tecnologia? Qual o significado da vida de Jesus para nós que vivemos em uma realidade tão diferente daquela em que viveram os judeus do século I d.C.? Para mim, estas são questões fundamentais da fé, e sem ter uma adequada compreensão sobre tais temas, não podemos nos aprofundar no mar de riquezas que é a doutrina cristã.

Inicio a responder com outra pergunta: Cristo morreu por nós ou por causa de nós? Aqui temos uma diferença fundamental entre duas formas totalmente opostas da significação de sua morte. A maior parte das pessoas crê que Jesus morreu por nós. Entretanto, para ser sincero, nunca compreendi muito bem o que queriam dizer com isso, até que li A última semana, livro que mudou profundamente minha compreensão da morte de Cristo. Como assim Cristo morreu por nós? Que significa “por nós”? Por trás dessa expressão há uma extensa história cultural que a maioria desconhece, mas sem a qual não se entende a vida de Jesus.

Na maior parte das culturas antigas, seja no monoteísmo judaico, seja no politeísmo da cultura greco-romana, a celebração religiosa tinha como ponto alto um sacrifício, através do qual os homens estabeleciam sua relação com a(s) divindade(s). Matavam-se animais, seu sangue era aspergido sobre o altar, e a carne poderia ser queimada ou consumida pelos participantes da cerimônia. A fumaça, que subia aos céus, representava que a oferenda chegava a Deus (ou aos deuses). O sacrifício era uma verdadeira refeição com a Divindade. Os homens reúnem-se para se relacionar com a Divindade, e essa relação se estabelece numa refeição, na qual deuses e homens comem juntos, tornam-se amigos. É algo análogo ao que vemos até hoje, no mundo social. Quando queremos estreitar nossos laços de amizade com alguém, convidamos essa pessoa para comer conosco. Nas religiões da antiguidade acontecia o mesmo, os homens estreitavam seus laços de amizade com a Divindade através de um banquete, no qual o sacrifício do animal é parte integrante e central do rito religioso. Pelo sacrifício Deus esquece nossas falhas (pecados) e renova sua amizade conosco. Faz-se uma aliança entre o divino e o humano, uma união entre a Terra e o Céu. É nesse sentido que o sacrifício era feito no judaísmo: renovar essa aliança entre Deus e os homens. Aquele que faz um sacrifício de sangue quer renovar sua amizade com Deus, reconhece que deve obediência ao Criador, ou seja, ele relembra-se de Deus, e Deus, por sua vez, “relembra-se” dele.

Esse significado não é recordado mais. As pessoas associam o pecado original ao sacrifício de Jesus, como se com o erro de Adão (e de toda a humanidade) nós estivéssemos devendo algo para Deus, quer dizer, alguém tinha que morrer para pagar esse erro. Os sacrifícios de animais seriam uma forma de ir aliviando a ira de Deus pela quitação total da dívida, que só poderia ser completamente paga com um grande e perfeito sacrifício. Assim, o próprio Deus teria se encarnado e morrido para pagar uma dívida que os homens tinham contraído com Ele, no pecado original. Cristo morreu e quitou a dívida. Dessa forma Ele morreu por nós. Se ele não tivesse morrido, os homens continuariam morrendo por toda a eternidade. Essa visão do cristianismo não é correta, e deturpa toda a mensagem de Cristo. É uma visão até totalmente ilógica até do ponto de vista racional. Como alguém poderia pagar a si mesmo, com recursos próprios, por uma dívida de outro? Muitos acreditam nela porque é o caminho mais fácil. É simples vermos que há uma dívida a ser paga e Cristo a pagou com sua morte, e ponto final. Mas o verdadeiro Jesus é muito mais. Ele é muito mais belo, maior e mais profundo que todas nossas simplificações. São Paulo já dizia que todo nosso conhecimento atual sobre Ele é imperfeito, parcial. Vemos somente reflexos dessa luz infinita que Deus é. À plenitude teremos acesso só depois que Aquele que é pleno se manifestar novamente entre nós, diante de todo o mundo, em gloria e poder.

É evidente que no pecado original tem início todos os sofrimentos humanos. Os homens esquecem os caminhos de Deus e constroem seus próprios, e é isso que gera todo o mal na Terra: a negação de Deus. Diante do rompimento na primordial harmonia/união entre o homem e Deus, Deus revela-se aos homens através de profetas desde o início. Através do Espírito Santo, Deus continua guiando a humanidade por seus caminhos, mesmo tendo boa parte dos homens O ignorado e criado outros tantos deuses/ídolos, cujo maior de todos é o dinheiro, a causa de todas as guerras em todos os tempos. A revelação nos mostra que nós mortais podemos esquecer Deus, mas Ele nunca desiste de nós. Os sacrifícios e as religiões foram uma forma de diminuir essa saudade que sentimos do Édem, da época em que estávamos plenamente em Deus. O sacrifício era uma forma de diminuir essa distância entre o pecador e seu Criador. Deus desde o início do tempo de rompimento da ordem inicial do Édem buscou a melhor forma de restabelecer a perfeita união entre Ele e seus filhos. E o principal meio que se utilizou foi a revelação, na qual encontramos o Caminho de retorno. Através da revelação recebemos a lei e a promessa de que tudo retornará a ser o que era no princípio. A essa promessa divina chamamos de profecia. Na encarnação do Verbo, que é Jesus, Deus revela-se em plenitude aos homens e cumpre suas promessas/profecias. Jesus, portanto, é a encarnação dessa plena “religação” entre Deus e os homens, a tal ponto que Ele fez-se homem para mostrar que o destino do homem é ser divino. A própria etimologia da palavra religião, como nos lembra Santo Agostinho, vem do verbo latino religare, que significa religar. Dessa forma, a religião e a revelação atuam juntas para religar o homem a Deus.

O Verbo encarnado fez de tudo para cumprir esse propósito (que é religar o homem ao seu Criador) e revelar Deus plenamente aos homens, pois é com a revelação que se faz o retorno ao Édem. Jesus substituiu a lei mosaica e instituiu a lei do Amor, que é o verdadeiro Caminho a Deus. O Caminho de Jesus foi de “enfrentamento”. Jesus enfrentou as estruturas de um mundo que esquecia Deus e idolatrava mais ao dinheiro e a falsos deuses e, ao mesmo tempo, revelava qual era a verdadeira face de Deus, seu pai, em seu ministério. O sermão da montanha é um exemplo dessa atividade de Jesus de revelar a verdade sobre o Criador a todos. Junto com a pregação da Verdade vemos a forma como Jesus combatia as injustiças de seu tempo: Ele as denunciava. Ao expulsar os mercadores do Templo mostra, claramente, sua insatisfação com as estruturas de um mundo injusto que deveriam ser mudadas, no Amor divino.

Jesus enfrenta as autoridades do Templo, símbolo máximo do poder entre os judeus, e as chama de sepulcros caiados e víboras. Ele não tem medo diante do mal, muito pelo contrário, nos ensina que só podemos enfrentar o mal com a arma da verdade e da denúncia. Só assim podemos mudar a ordem injusta do mundo. O Jesus, que cura e que enfrenta as autoridades do Templo, é um Jesus intimamente preocupado com a salvação dos homens, como também com a mudança social. O Caminho de Jesus tem duas vias, uma que se dirige a salvação dos homens e outra que vai ao encontro dos problemas sociais. Por isso, não podemos esquecer que também há um Jesus social, ou melhor, um Jesus que nos ensina que devemos lutar também pela mudança do mundo, transformá-lo à luz da revelação divina. Sem sua esfera social, o cristianismo torna-se incompleto. Por isso a Igreja, ao longo dos séculos, tem construído hospitais, escolas, orfanatos e universidades. A Igreja sempre promoveu essas instituições porque compreendeu, desde o início, que a mensagem de Jesus devia sim mudar o coração dos homens, mas que o homem modificado pelo evangelho deveria também lutar por mudar o mundo. Nessa luta cristã não combatemos com armas, guerras ou revoluções, mas com o Amor.

Chegamos aqui à verdadeira causa da morte de Jesus. O Verbo veio ao mundo por causa de nós, ou seja, por nossa salvação. Por nossa causa ele revelou a Verdade e enfrentou o mundo, ou melhor, enfrentou o mal do mundo. E o mundo o odiou. Por nossa causa, Jesus faria tudo, no Amor, para nos dar a verdadeira vida. Por nossa causa Ele estaria disposto a tudo suportar, por isso, por nossa causa ele morreu. E sua morte nos revela o quanto Deus nos ama, apesar de todos os erros da humanidade. Deus, desde toda a eternidade, tem um projeto para a humanidade, e Ele não desistirá dele nunca.

Portanto, Deus nunca desistirá de nós. Seu Amor nunca passará. Foi o ódio do mundo por Deus que matou Jesus. Na verdade, Cristo demonstrou que não queria morrer, como é sentimento natural de todo aquele que vive; tanto que em seus momentos finais, no Jardim da Oliveiras, chegou a pedir que o Pai lhe afastasse desse mal. Mas Ele também disse que não fosse feita a sua vontade (a vontade de sua natureza humana), mas a vontade de seu Pai. Como Jesus nos amava incondicionalmente, aceitou morrer por nossa causa. E não em substituição de nossa morte, como se estivesse pagando uma dívida morrendo por nós. O sacrifício de Jesus religa a humanidade a Deus novamente. E esse sacrifício é perfeito porque não é feito por mãos humanas, mas pelo próprio Deus que se sacrifica por nossa causa, num gesto de supremo amor. Deus religa os homens a Si para que se tornem imortais, como Ele é imortal.

Deus, através de sua plena revelação em Cristo, quer nos transformar para que, renovados em seu Espírito, transformemos o mundo. A transformação espiritual, que tem palco no coração humano, termina na transformação social, que transfigura o mundo segundo a luz eterna de Deus.

10/05/2011

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